

Kenose e Ágape
Ágape é o amor de Deus.
Filosoficamente assim como ‘Eros’ é o amor segundo Platão, amor este marcado pelo desejo, pela potência do desejo e na intensidade do desejo. Assim como ‘Philia’ é o amor segundo Aristóteles ou Espinosa, marcado pela presença do objeto amado, pela alegria da sua companhia, Ágape é o amor segundo Yeshua Hamashia (Jesus) e pela filósofa , mística e ativista política francesa do século XX, Simone Weil. Quando ela procura pensar esse amor, ela começa quase sempre citando uma frase do historiador grego Tucídides que escreveu o seguinte: “Em se tratando dos humanos, que sempre, por uma necessidade natural, todo ser tende à dominação, onde quer que suas forças prevaleçam.” Todas as pessoas, todos os seres tenderão ao máximo a exercer ao máximo seu poder, sua força vital, seu conatus. É a lógica do ‘conatus’ de Thomas Hobbes que impera: todo ser tende a perseverar em seu ser, isto é, a existir o mais e o melhor possível. É a lógica da vontade de potência em Nietzsche: sempre e em toda parte, por uma necessidade natural, todo ser tende a afirmar o máximo da sua potência. É a lógica da potência. Também é a lógica da alegria pois para o filósofo holandês Baruch Espinosa a alegria é a passagem para um estado mais potente do próprio ser. É a passagem para uma perfeição maior. E consequentemente para uma realidade mais perfeita. Pois para ele, perfeição e realidade são uma mesma coisa. Ser feliz é existir mais. Assim como ser triste é existir menos, um passo mais perto da morte física.
Mas é aí que Simone Weil se separa de Espinosa. A potência e a alegria não podem ser suficientes, pois há no mundo alegrias más e potências injustas. A potência da Rússia quando arrasa a cidade de Kiev e massacra a população civil não é sinônimo de alegria. A alegria do ditador Putin também não pode ser considerada também uma alegria moralmente digna. Simone cita Tucídides (“sempre, por uma necessidade natural, todos comandam onde quer que tenham o poder de fazê-lo”), mas depois acrescenta em substância: salvo quando há o amor em caridade.
O que é o amor de Caridade? O que é Ágape?
É um amor que renuncia a exercer o máximo da sua potência; é um amor que contraria Tucídides, ou antes, que é exceção, quase super-natural. Deus é justamente esse amor que renuncia a exercer ao máximo sua potência. Se Deus tivesse querido exercer ao máximo sua potência, não teria havido mais que Deus. Tudo seria Deus. Não haveria espaço para nada ser diferente dele. Para que Deus crie outra coisa além dele, ele teve que consentir em não ser tudo. Deus tem de ‘se retirar’, escreve Simone Weil, reencontrando aqui, um velho tema místico judaico, que se chama “tzimtzum”, doutrina do místico judeu do século XVI, Isaac Luria, que preconiza que Deus iniciou o processo de criação contraindo sua Luz Infinita para permitir um "espaço conceitual" no qual reinos aparentemente independentes pudessem existir.
Na interpretação da Kabbalah Judaica, tzimtzum dá origem ao paradoxo da presença e ausência divinas simultâneas dentro do vácuo e da Criação que daí resultaram. Os cristãos chamarão de quenose ou exinanição, que é o movimento pelo qual Deus se retira, se esvazia da sua divindade, enfim, renuncia a tudo para que outra coisa possa existir. O quê? O mundo, conosco nele e todas as contingências que advêm disso, incluindo o mal físico, metafísico e moral segundo as categorias de mal elencadas pelo filósofo alemão Leibniz no século XVII.
Por isso que existe o mal no mundo, segundo Weil, dando assim uma espécie de solução muito original e profunda ao célebre problema do mal. Se não houvesse o mal no mundo, o mundo seria perfeito, o mundo seria Deus, tudo seria Deus, não haveria mais que Deus, e não haveria mundo. Deus só poderia criar algo que fosse diferente dele. Senão, seria Ele mesmo. Deus não pode criar outra coisa que não seja ele, a não ser que aceite não ser tudo; e, como Deus é todo o bem possível, ele só pode criar o ‘menos bem’ que Ele: Deus só poderia criar o mal. Ideia extremamente assustadora e ao mesmo tempo bela. Muito longe de ser uma prova contra a realidade de Deus, ou em termos vulgares, contra qualquer tipo de ateísmo, revela a Sua verdade. A sua ausência, a sua distância, a sua espera, que é o tempo, posto que vive Ele vive em Eternidade e nós somos presos ao tempo. Revela a verdade que é o seu amor, porém em retirada. A criação é da parte de Deus não um ato de expansão de si, mas de retirada, de renúncia e todas as criaturas são menos do que só Deus. A partir do momento em que Deus se retirou, apareceu uma outra coisa que não é Deus, e portanto bem menos que Deus, que é o mundo, com todas as suas imperfeições, com o mal nele e conosco juntos. Deus aceitou essa diminuição. Ele esvaziou de si uma parte de seu ser. E esse esvaziamento, essa kenose, essa contrição já é um ato de sua divindade e de sua sabedoria. Deus permitiu que existissem coisas que não Ele e que valem infinitamente menos que Ele.
Porquê?
Por amor.
Por amor e para o amor. Deus criou o amor e os meios do amor. Deus no entanto, não carece de nada, não pode existir mais em si mesmo ou passar para uma perfeição maior e superior. Esse amor que se retira não é éros nem philia: é um amor de caridade (ágape).
Deus consente em não ser tudo. Ele se retira. O que restou? A ausência de Deus: o mundo, isto é, o mal, como nos ensina outro filósofo alemão Immanuel Kant. O mundo que vemos é mais ou menos quando andamos numa praia, na areia molhada, com a maré baixa: quando o pé se retira, só resta na areia a marca do pé ausente. Pois bem, o mundo é a marca do Deus ausente.
É no retraimento e não na manifestação do poder que está a maior grandeza do amor.
"Deus absconditus - mysterium tremendum” - O Sagrado - Rudolf Otto
Mas não é um amor que quer existir mais, nem afirmar ao máximo sua potência; ao contrário, é um amor de renúncia a exercer sua máxima potência, que consente em existir menos para que outra coisa que não ele possa existir. Amor de Caridade. Amor Àgape.
"ho theos agape estin" - Deus é amor
Primeira Carta de São João, 4:16
A mais bela formulação dessa ideia foi dada no século XX pelo filósofo alemão Theodor Adorno em sua obra Minima moralia. Adorno escreve o seguinte: “Serás amado quando puderes mostrar a tua fraqueza sem que o outro sirva-se dela para afirmar sua força.”
Amor de Caridade - Amor de Ternura - Amor Ágape
É isso a caridade: a parte da doçura, um pouco de compaixão, como dizem os orientais, de retirada, como diria Simone Weil, que vem temperar não apenas a violência do amor desejo ou da falta (éros), com a potência e a alegria que sozinhas teriam uma força desproporcional: trata-se de consentir em existir um pouco menos para que o outro possa existir um pouco mais. Pois o eu que ama mais a si mesmo que o outro é egoísta. Retrato da pós-modernidade em que vivemos, as pessoas são narcísicas demais para amar o outro, são prisioneiras da própria imagem, do seu 'euzinho' adorado, apaixonadas pelas ilusões que têm sobre si.
Tomás de Aquino já no século XIII distinguia também dois tipos de amor: o amor de concupiscência e o amor de benevolência. O primeiro é o ato de amar o outro para o nosso bem. Já o segundo consiste em amar o outro para o bem dele. Quando se ama verdadeiramente o outro para o bem dele e não mais para o nosso próprio bem.
Um amor sem egoísmo, sem possessividade, sem pertencimento, sem fronteiras.
Esse é o amor de Deus por nós.